O Coiso, uma obra-prima do medo

Thiago Mendanha
3 min readOct 11, 2018

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Nesses dias tão sombrios para nossa jovem e frágil democracia, tenho estado angustiado e com uma melancolia antecipada. Fiquei tentando associar esses sentimentos que me parecem familiares. Cheguei a lembrar que na verdade não os senti, mas que os simulei através da arte. Lembrei que refleti sobre esse estado das coisas possível quando assisti ao anime Devilman Crybaby da Netflix, que aliás recomendo, onde as pessoas se revelam demônios quando se entregam aos desejos mais inumanos e perversos e começam a causar violência e morte generalizada. O anime te faz refletir nessa metáfora quando mostra a dor de descobrir que seu pai tornou-se um demônio, que sua irmã e seu filho, ainda uma criança, tornaram-se demônios. Que aquele seu melhor amigo ou aquela amiga de infância também foram tomados por demônios quando não foram resistentes aos piores desejos. Nessa narrativa há os devilman que são aqueles humanos que conseguiram dominar o demônio que os tomou, subvertendo a ordem de controle, de forma que não manda o desejo do demônio mas o desejo do humano. Assim, tem-se uma pessoa com poderes de demônio mas mantendo a consciência humana que censura a consciência de demônio.

Lembrei também da sensação de desespero e medo quando assisti Mãe do diretor Daren Aronofski e consegui relacionar com essa histeria coletiva pela qual estamos passando. Muito oportuna a metáfora religiosa do filme quando se vê uma população de maioria cristã aderindo uma narrativa de violência e ódio ao outro.

Por fim, outro paralelo muito apropriado é com o último filme It, A Coisa, que adapta a obra do mestre Stephen King. Uma cena em particular é significante. Adolescentes valentões, ou bullies, estão agredindo um garoto, entre ofensas e xingamentos sobre seu peso, o líder da agressão usa uma faca para escrever seu nome na barriga do garoto. Enquanto isso, um casal passa lentamente de carro ao lado dessa violência e quando pensamos, junto com a gangue, que eles intervirão o casal simplesmente assiste e segue seu caminho como se nada de errado estivesse acontecendo. Nisso vemos o balão vermelho ascendendo dentro do carro. Esse balão sempre aparece quando o diretor quer indicar a influência dA Coisa nos comportamentos dos moradores daquela cidade. Maldades, mortes, violências, preconceitos e ódio estão tão latentes com números tão alarmantes naquela cidade e mesmo assim há um sentimento de insensibilidade generalizado que se explica por essa presença maligna desse ser, incorporado na figura de um palhaço.

Não consegui deixar de pensar que a obra-prima do medo, como ficou conhecido o livro It A Coisa aqui no Brasil, diz muito sobre o que estamos historicamente repetindo. Enquanto muitos acham que O Coiso (e só quando pensei nesse paralelo é que percebi o quão certo é esse apelido) é a fonte do problema desse estado de medo, raiva e ódio contra o outro, a verdade é que, assim como A Coisa de Stephen King, O Coiso só se ocupa de trabalhar os medos das pessoas. Pois é o medo não refletido, não entendido, que leva ao ódio do objeto do meu medo. Assim, nem A Coisa, nem O Coiso precisam sujar suas mãos. Basta inflar os medos, produzir o inimigo, disseminar um discurso de ódio que vá de encontro com esses medos e, pronto, depois disso basta orquestração e manutenção.

As pessoas darão o controle para seus demônios internos e literalmente perderão a sensibilidade e empatia necessárias para resistir à crueldade delas. É por isso que da mesma boca que sai “Jesus é amor” também sai “bandido bom é bandido morto’. Da mesma boca que sai ‘Deus acima de todos” também sai “o erro é torturar e não matar”. E o bandido que te rouba, te mata, aos poucos, ao invés de ser aquele que primeiro gerou o medo passa a ser aquele que é diferente, que pensa diferente, que deseja diferente, que ama diferente.

Nossa democracia tem pouco mais que 30 anos e independente dos resultados desse segundo turno, ela já foi ferida de morte pois a obra-prima do medo já foi instalada nos corações. Na história de Stephen King apenas um grupo de crianças chamados de Perdedores, dos quais contam entre eles uma garota chamada de puta, um negro, um gordo, um judeu gay, e os demais, conseguem derrotar A Coisa, pois superaram seus medos. Na história, A Coisa sempre retorna num ciclo de 27 a 30 anos. Após 30 anos de democracia estamos agora enfrentando um monstro que nada mais é que a representação de todos os nossos demônios libertos. Espero que, quando superarmos de novo esse Palhaço, não nos esqueçamos que A Coisa sempre volta, anos depois, pra testar a nossa memória histórica.

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Thiago Mendanha
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Written by Thiago Mendanha

O que me consola é que estou a seis pessoas de distância da Scarlett Johansson. Só preciso saber quem é a primeira.

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